Friday, January 28, 2011

orto-grafia

"Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar."

Manuel Halpern


(eu sou das saudosistas teimosas, sei lá se me quererei adaptar... por que é que afinal a grafia deixou de estar direita?!)

2 comments:

Tata said...

Habituar-nos-emos todos :)
"O homem é um animal de hábitos" lá dizia Aristóteles.

Teresa Anjinho said...

Pois eu serei resistente... revolucionária das letras, aderirei a qualquer movimento e não me negarei a qualquer acto - sim acto - de protesto! Não vivemos numa época de liberdade? Então, por que não invocar a tão apregoada liberdade de expressão, em nome de algo que para nós é uma forma de expressão fundamental? Se quiserem podem não me ler… chamar-me de inculta ou ‘tacanha’, ou até mesmo corrigir. Lembro-me com grande saudade dos “erros ortográficos” da minha Titi, avó Ninita e Avô Horácio, quando escreviam Terezinha, Pharmácia, entre outros. Não eram menores para mim, mas letra viva de um passado, que eu sempre respeitei. Ora, agora parece ter chegado a minha vez… Do alto dos meus 36 anos, passarei eu a ser passado, esperando que os outros me respeitem!