Tuesday, September 27, 2005

Sempre é o limite

lembro-me sempre da Pipa. e também da Ju duma altura em que ainda a não conhecia. e não quero ter que me lembrar de mais ninguém. e lembro-me também de si, vezes sem conta num espaço grande (curto?) de um dia meu.
lembro-me de nós, eu ao colo, no sofá quente da sala, onde ininterruptamente, quase sem saber falar, a chateava para me ler a história de O Pintarroxo Friorento, da colecção da Anita (ainda hoje não sei por que não constava a Anita!). e também da altura - eu mais velha - em que a fazia voltar atrás nas páginas quando, pelo cansaço da monotonia, resolvia saltar pedaços do conto... e de acordar com o som das panelas no piso de baixo, quando os pais viajavam e nós ficávamos lá - sempre cedo, sempre com tempo, como o exige a arte de cozinhar. e do bolo de maçã, o meu! e do doce-gelado com suspiros e ananás! e das tentativas sentidas por me fazer transmitir o segredos de culinária (pratico muito pouco, e tenho pena). e não me lembro - mas lembram-se bem os pais! - de acordar a meio da noite, mimada, a querer colo! colo, o mesmo colo das tardes longas. e lembro-me daquelas fatias de pão que cozinhava, porque eu gostava. eram tão boas! e das lições de vida, e do pragmatismo, e da inteligência. e da televisão sempre alta, porque já ouvia mal. e da nossa cumplicidade. e da adequação exacta a um tempo de hoje. e das fotografias do pai, dos tios, e do avô. e dos episódios da vida dele, quando vínhamos de carro para Lisboa. e de me contar do seu coração imenso, das noites sem descanso ocupadas em visitas ao domicílio. e da aflição que lhe fazia o avô não cobrar - eram seis filhos, miúdos, tantos, por criar... e do dia do helicóptero, quando a velocidade não bastou (sabe, ainda há uns meses, em Faro, descobri quem me recordasse esse dia... duas gerações depois... mas eu nem o tinha pedido...). e da força, indiscutivelmente levada ao limite do que para nós é possível (impossível, corrijo!). e do exemplo. e do presépio que montávamos e era tão grande (e eu sem compreender por que é que o de casa tinha que deixar tanto a desejar na minha escala dimensional de importâncias). e de me obrigar a lavar as mãos e os dentes depois do pequeno-almoço antes de ir para o colégio, e de isso me revoltar por dentro por não lhe descobrir sentido (agora o dentista aconselha-me a lavá-los menos, porque o faço vezes em excesso)...
e daquela tarde no hospital, onde soube que era a minha última. e foi. três dias mais, e a perfeição do número aqui irrita-me! e as mãos, tão grandes ainda, tão fortes, como se a vida as não pudesse abalar. quase tanto como a alma. e de tudo. e de tudo naqueles dias derradeiros. e da multidão que apareceu e não arredou pé. se os pudesse ver, eram tantos, tantos, tantos... e dos que não puderam ir, mas que também estavam. e da emoção tão perturbadora de um adeus. e do João, pequeno, incrédulo, ingénuo, a querer observar-lhe o rosto e a perguntar se depois voltaria para casa. depois. (não João, na vida é para a frente...) e daquela imagem funda, ainda incompreensível, confusa, brutal, de a Avó morta, em movimento, com o nosso castelo e o sol por detrás: pelas grades de luz das minhas lágrimas, estavam maiores e mais bonitos do que nunca.

7 comments:

Unknown said...

Ai Mikas...gostava tanto que já tivesse passado tudo para a poder recordar assim... dói esta despedida em bocado que amanha já podem nao ser...

said...

gostei muito. é bom ver um outro espaço de ti, menos ocupado. ficas mais assim às vezes e és mais tu*coisas boas


(força margarida, e força jana)

Unknown said...
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Unknown said...
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Unknown said...

Com o tempo essa revolta passa... (tudo passa com o tempo! já dizia a minha) E encontrarás um forma muito especial e só tua de te encontrares com ela. De a sentires na tua vida... no teu caminho. Como uma força que quando precisas aparece e te faz esboçar um sorriso, do nada. Não se explica. Sente-se! E é bom.. é eterno!

pipa said...

=')

Vega said...

Quase chorei com este "post"! Na verdade, sou uma chorona pela escrita... e este texto está qualquer coisa de espectacular.