Monday, March 05, 2007

E meu pai

A relação que sempre tenho tido com o meu pai é de absoluto respeito. Parece-me que apenas uma vez na vida me deu uma bofetada. Ainda me lembro onde foi, por trás da porta da cozinha, na Glória, no corredor, mesmo antes de chegar à sala de estar. Já não sei por que foi, mas devo ter merecido, com certeza, que ele é o mais recto e justo que eu conheço. Além disso, é inteligente, tem humor, é habilidoso e um pedagogo por natureza.
A ele ainda chamo "papá", como se eu não tivesse crescido, como se ainda fosse pequena e lhe coubesse no colo, e como se ele ainda continuasse tal qual ele era, capaz de tudo, a fazer contas de cabeça tão rapidamente quanto eu com papel e lápis... mas já não... justifica-se quando não consegue colocar rapidamente o cinto do meu carro e o carro teima em apitar, dizendo que está habituado é ao dele... e eu, calmamente, digo que sim, que ele tem razão, que os do carro dele são infinitamente mais fáceis de colocar... e ajudo-o disfarçadamente.

6 comments:

Maggs said...

emociono-me sempre com estas coisas do Avô...

Cat said...

É incrivel como me consigo rever em algumas frases...

Tata said...

São os desígnios da escrita. Nós revemo-nos nas palavras de uns e de outros e sentimo-las também como nossas.
Obrigada por ir aparecendo.

Anjinho said...

Enquanto lia a tua mensagem, por entre imagens soltas do passado, fui relembrando, com saudade, os tempos da minha infância, quando sazonalmente, por ocasião das férias escolares, visitávamos os avós na Glória, bem como muitos outros familiares, primos e primas, cujos graus de parentesco se perdiam por entre ramos bem velhinhos de uma generosa árvore genealógica.

A viagem era uma animação desenfreada ao ritmo da alegria do meu pai que, sempre desejoso de chegar, uma vez nas imediações, todos os anos nos contava as histórias de cada curva, árvore ou chaparro, buzinava antes de entrarmos no portão e acenava a um conjunto de ‘Ti Marias’ e ‘Ti Manéis’, provocando os risos escangalhados de todos nós, apenas temperados com a postura mais comedida da minha mãe, que com um mero sorriso tentava acalmar o entusiasmo.

Assim que as portas se abriam, os sentidos sofriam um assalto, desde o inebriante cheiro de ar puro, aos barulhos dos animais, à casa impecavelmente caiada, à brisa morna no nosso rosto e ao típico som da avó Mariana ou da ‘mana’ que, dirigindo-se a passos largos e de braços abertos, iam soltando um sincero e típico ‘eh jica’, cujo som era, por mim, tantas vezes parodiado – ainda hoje. Depois seguia-se o bailado do entra e sai do carro, motivado pelo inexplicável medo dos cães que, invariavelmente, habitavam as redondezas da quinta, acompanhando fielmente aquele que consideravam o seu dono. Ano após ano, estes amigos iam mudando de cara, ou melhor, de focinho, mas lembro com ternura um em particular, chamava-se Piloto e era um pequeno ‘salsicha’ rafeiro. Foi o primeiro cão de que me aproximei, chegando mesmo a fazer uma festinha, tímida e receosa, com a ponta dos meus dedos, na extremidade do rabo, enquanto o avô, muito confiante e com paciência, ia incentivando a exorcização do medo. No entanto, confesso que continuava a preferir as cavalitas do avô Inácio, senhor de uma altura considerável que, à data, parecia um verdadeiro arranha-céus. De facto, um privilégio, mas facilmente abdicado assim que nos aproximávamos dos cavalinhos, que na realidade eram pequenos troncos rotulados de cavalos pelos meus tios e pai, ou então, dos escorregas e baloiços da escola, um manancial de brincadeira que repousava em silêncio à nossa espera. Era uma farra! No final o resultado nem sempre era muito apreciado pela minha Mãe que, abanando a cabeça, assistia a um desfile de sujidade, destacando-se sempre a minha prestação e a do meu irmão Jorge.

Depois, com o tempo, o papel do avô foi sendo assumido pelo Tio Tavares que, com igual paciência, mas original disposição, assistia à cerimónia dos cães e acompanhava as passeatas pela quinta, lançando-nos desafios que ainda hoje nem sempre consigo ultrapassar com sucesso. A ideia era identificar as várias plantas e ervas através do cheiro… aqui entre nós, eu só acertava nos orégãos. Depois seguiam-se os truques de magia, os jogos de cartas e as estórias, intercaladas com longas e saborosas refeições, sempre com um rasgado sorriso, face corada e olhar carinhoso. Querido Tio Tavares, muito obrigada pelas gargalhadas do passado e o sorriso que ainda hoje esboço enquanto escrevo e relembro!

A vida corre a um passo acelerado e as pessoas de quem nos lembramos são as que mais sabem aproveitar o ritmo do tempo, dando aos outros o melhor de si.

Tata said...

Com os olhos em água, não posso deixar de te dizer, prima, que o teu texto é lindo!
Se me lembro de tudo o que contas...
... e era tudo tão puro, tão incrivelmente sentido, tão verdadeiro, que constantemente agradeço o facto de nos termos uns aos outros e de sermos uma família unida.

Maggs said...

passei a correr, como se sem tempo, e com pouco, de facto, para o que me propus realizar hoje. também chorei. e agora voltei, por incontornável força de dentro que me impelia a agradecer-te. acho que é assim quando nos sentimos a melhor família do mundo. ;)