Sunday, June 10, 2007

Letras e com laço!

tenho a memória ainda cheia do peso que as letras me faziam, quando o pedido de palavras e textos e criação era transtorno infatigável para a minha mente objectiva e geométrica. num ápice, porém, um dia o chão tornou-se outro. sem o ter programado em mim, chegou como que por surpresa, anunciando-se num apetite ávido que me acometeu. é a força dos outros em nós, é a forma de deixarmos que a pele dos outros passe, aos poucos, a ser também um pouco da nossa própria pele. se em perspectiva de extremidade, é o amor dos homens, pelos homens.
veio o "Pelo Sonho É Que Vamos", o grupo, a amizade, a poesia. o viver pelas palavras. o sentir para escrever, naquele refúgio onde fomos tudo, em todos. lembro-me sempre da escrita de Maria Rosa Colaço, do exemplo mais bonito do que a prosa poética sabe ser. e deste livro aqui, que a Lídia tinha comprado tempos antes, numa zona de alfarrabistas num dia qualquer da Feira dos Golfinhos.
e de o folhearmos com as mãos mais doces, por estar gasto e ser das crianças. e de nos determos na dor das imagens e penetrarmos, por elas, no fosso do que entristece, mas também alegra. e de enchermos a escola das mesmas imagens, por ocasião das nossas reuniões de poesia. e de almejarmos o livro todo para o aconchegarmos a cada um, com as mesmas mãos, ainda mais doces, mas não lhe perspectivarmos um rasto sequer em nenhum canto de lado algum. e de a Dra João, ainda ligada familiarmente à autora, mo tentar desencantar, tendo que o substituir, no entanto, por fotocópias bem feitas do que ela mantinha guardado em casa. e de me avisar da fragilidade da Maria Rosa, numa altura em que a fui conhecer no inóspito sítio onde, por acaso, eu ainda estudava. e de me atormentar pela genialidade definhada, mas ainda assim, se ter tornado dos episódios mais marcantes de mim. (não houve tempo para o chá em sua casa, mas guardo o convite em presente "Com Laço", Maria Rosa...)
este ano, por altura do meu aniversário, a Lídia surpreendeu-me com um exemplar do "Estas Crianças Aqui". desmoronei o desejo que tinha adormecido por impossibilidade de o ver vivo e deixei-me ser feliz-de-criança, como cada uma das que traz dentro. "- não sei bem se ele sabia o valor do que me estava a vender..." - dizias-me... por certo que não. sabemo-lo nós, não digas a ninguém!
na mesma cidade, na mesma feira, mais de duas mãos cheias de anos depois. a Vida não se esquece.

2 comments:

Tata said...

Quando ela faleceu, em 13 de Outubro de 2004, espalhei pela escola poemas de Maria Rosa Colaço. Foi uma forma de lhe prestar homenagem.

Carlos M. Gomes said...

Há pessoas que por mais incorpóreas que sejam nunca deixam de ocupar um espaço físico connosco. São uma realidade no nosso ser, imprescindíveis para olharmos o mundo à nossa maneira usando um pouco da sua.